Saúde e doença são questões de classe

As contradições do capital e a crise do neoliberalismo, se não poupam a maioria das pessoas, têm efeitos dispersos nas pontas do espectro social. Poupa, indubitavelmente, o famoso 1% que, mesmo exposto ao risco de contrair o vírus, especialmente em viagens ao exterior, tem à sua disposição serviços de saúde exclusivos e comodidades entregues em domiciílio, e pode permanece isolado em casa enquanto espera a tempestade amainar. Isolado, no caso, é apenas maneira de dizer, como lamentavelmente ficou explícito no registro de mortes observadas até agora: um porteiro, uma empregada doméstica que continuava trabalhando, de máscara, atendendo os patrões que retornaram infectados de uma viagem à Itália. A palavra doméstica, na descrição desta segunda vítima, é em si uma ironia, já que ela cuidava da casa alheia estando impedida de cumprir o isolamento no próprio lar.
A outra ponta do espectro social é justamente lares como, provavelmente, o dessa senhora que faleceu. Residências sem acesso a serviços adequados de água, luz, transportes. Casas sem acabamento, como as que podem ser encontradas em todas as favelas do País, onde pedir para lavar as mãos antes de comer é uma piada duplamente macabra. Pessoas que lutam desde sempre para sobreviver se vêm, subitamente, apanhadas em meio a uma pandemia que expõe ainda mais as suas imensas fragilidades.
O governo propõe, para essas pessoas, o isolamento em navios de cruzeiro, em um reconhecimento de que o ambiente onde vivem normalmente não oferece as mínimas condições de saúde. Ambiente para o qual, é claro, serão devolvidos os sobreviventes da pandemia. O cenário das férias de luxo dos ricos são, assim, transformados em hospedagem temporária para pobres em situação de crise sanitária. Até o nome do programa, sugerido pelo ministro da economia, depõe sobre a transposição da barreira de classes: coronavoucher.
Entre os dois extremos, está a massa da classe trabalhadora, habituada a viajar apertada no transporte público, espremer o final do mês para caber no salário, apertar o cinto para prover a família das necessidades básicas. Com seus empregos suspensos por tempo indeterminado, elas recebem a notícia que seu salário poderá ser cortado pela metade. E que devem ficar felizes, pois ainda assim a solução é melhor do que perder o emprego. O importante, como sempre, é que a perda não recaia sobre o empresariado. Essa parcela da população é a que convive mais intimamente com a dicotomia do sistema financeiro. É a balconista da farmácia que vê o preço do álcool gel mais do que dobrar e assiste consumidores reclamando da dificuldade em encontrar o produto no comércio.
Hoje temos, ainda, um grupo que não se encontra em nenhum desses espectros mais visíveis, que são os trabalhadores precarizados, os subempregados, os que ‘vivem de bico’. Esses, sacrificam a própria vida e de seus familiares, porque um dia em casa significa uma oportunidade perdida de trazer algum dinheiro para casa. Sob o falso consolo de serem ’empreendedores’, eles sabem que ficar doentes é um dos vários ‘luxos’ a que não têm direito.
A pandemia, como qualquer situação limite, expõe o pior e o melhor das pessoas. Sem surpresa, traz à tona, também, as injustiças sociais que são a marca do nosso tempo. Algumas pessoas se organizam para fazer compras para os mais velhos, outras furam a fila para comprar papel higiênico. As instituições não costumam sobreviver intactas à grandes crises. Foi assim com as grandes guerras mundiais e com doenças anteriores. Em um dado momento, a Covid-19 terá sido vencida pela ciência ou o próprio vírus será neutralizado pela falta de hospedeiros viáveis. Como será o mundo que irá emergir desse episódio? Quais valores terão sido ressaltados, e quais contradições, superadas?

Foto: Diana Did/Shutterstock

Fonte: ANDESP-SN – Atualizado em 20 de Março de 2020 às 16h20

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