Há cinco anos professora do Curso de Fonoaudiologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Júlia Escalda, tem trajetória parecida com a de muitos jovens docentes e pesquisadoras das universidades públicas brasileiras. Devido à competitividade e à necessidade de alta qualificação profissional, fez pós-graduações, viveu de bolsas de fomento à pesquisa e, somente depois de passar em um concurso público e ter um trabalho efetivo, aos 29 anos, passou a contribuir com o INSS.
Comprometida com a profissão, Júlia se dedica integralmente à pesquisa, ensino e à formação de uma nova geração de brasileiros. Segundo a proposta de contrarreforma da Previdência, a docente só conseguirá se aposentar com valor integral se trabalhar até os 78 anos de idade, ou seja, apenas um ano a menos que a estimativa média de vida da mulher brasileira. Júlia considera que envelhecer no Brasil é um grande desafio, especialmente hoje, com o desmanche do Sistema Único de Saúde e da Previdência.
Quando o assunto é a aposentadoria, se depender do governo Temer (PMDB), restará à população trabalhar até o leito de morte. Se puder, com os poucos recursos financeiros que sobrarem, a uma pequena parcela da população ainda existirá a chance de pagar por um plano de previdência privada para ter um mínimo de dignidade nos últimos anos de vida. Essas são as opções que o governo federal, por meio da contrarreforma da Previdência Social, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/16, tenta impor aos trabalhadores. Mas, o que é apontado como ruim, ficará ainda pior se comparado os possíveis prejuízos entre os sexos masculino e feminino. O corte na carne, que atingirá toda a classe trabalhadora, será ainda mais profundo nas mulheres.
Com a contrarreforma passa a existir uma única modalidade de aposentadoria voluntária, que exigirá os requisitos de, no mínimo, 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para homens e mulheres. Os trabalhadores que almejarem a aposentadoria integral deverão contribuir por 49 anos. Atualmente, para a aposentadoria plena são exigidos 35 anos de contribuição para homens e 30 para mulheres, com contribuição mínima de 15 anos.
Ataque às mulheres
Uma das propostas da PEC que mais recebe crítica do movimento feminista é a tentativa do governo em igualar o tempo da aposentadoria entre mulheres e homens em 25 anos. A justificativa governista é o fato de o sexo feminino viver mais tempo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em dezembro de 2016, mostram que a média de vida da mulher brasileira é de 79,1 anos, enquanto o homem é de 71,9 anos.
Porém, o projeto de Temer não leva em consideração a opressão e o machismo, que diariamente impactam a mulher no mundo do trabalho. Pesquisas comprovam que elas possuem menores chances de chegar a cargos de chefia, o projeto de ascensão profissional concorre com a dupla ou tripla jornada, e que muitas são obrigadas a exercer para cuidar de filhos e gerenciar a casa. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2013, mulheres gastam cerca de 20 horas semanais em atividades não remuneradas voltadas ao lar. Enquanto isso, homens nas mesmas funções se ocupam por apenas 5 horas. Dados da empresa de recursos humanos Catho, de março do ano passado, indicam que no mercado de trabalho os homens ganham, em média, até 30% a mais que o sexo oposto.
Pesquisadora sobre gênero e direitos humanos, a professora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (Neim/Ufba), Salete da Silva, analisa o impacto da contrarreforma da Previdência na mulher. Para a docente, se as regras forem aprovadas, será o fim do pleno acesso à Previdência Pública, e haverá um aprofundamento nas desigualdades de classe e gênero. “Temer não enxerga o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres. Ignora que elas são mais mal remuneradas e, portanto, contribuem menos e são formalizadas mais tarde. Além disso, mulheres, em geral, tem uma trajetória de trabalho descontínua devido à maternidade, processos de adoecimento decorrente das sobrecargas, em virtude de muitas vezes não poderem assumir compromissos quando são cuidadoras de crianças, idosos e enfermos na família”, explica Salete.
Professora do Curso de Química do Campus I da Uneb, Carmen Sá, é um dos exemplos de quem foi obrigada a entrar tardiamente no mercado de trabalho, devido à necessidade de cuidar dos filhos. Começou a contribuir com o INSS aos 36 anos, em agosto de 1989. “Só me profissionalizei quando os filhos começaram a ir para a escola e eu dispunha de mais tempo para me dedicar ao trabalho”, explica. Aos 64 anos, pela atual regra, a docente já teria idade para a aposentadoria e receberia 95.5% do seu salário da ativa, ou seja, remuneração quase integral. Porém, se a contrarreforma for aprovada, a professora, além de ter que trabalhar mais 1,3 anos, só receberá 76,5% do salário atual. “Penso que as mulheres trabalhadoras sofrerão brutalmente com essas mudanças anunciadas, uma vez que em nosso país machista, excludente, trabalhamos muito mais que os homens”, comenta Carmen.
Segundo especialistas, entre os segmentos que as mulheres mais serão prejudicadas estão as trabalhadoras rurais, as domésticas e as docentes da educação básica.
No campo
Trabalhadores rurais, que até agora não eram obrigados a contribuir para o INSS, terão de fazer contribuições para se aposentar. Valerá a idade mínima dos 65 anos. A professora Salete da Silva explica o prejuízo maior ao sexo feminino: “Na zona rural, muitas mulheres são consideradas apenas auxiliares de seus maridos nas atividades de economia familiar”. Na medida em que serão obrigadas a pagar pra se aposentar, isso terá forte impacto no orçamento, sendo que provavelmente a maioria nunca terá condições de alcançar a aposentadoria. “Ao propor que trabalhadores rurais contribuam, o governo golpeia de morte aqueles e, sobretudo, aquelas a quem não foram dados, historicamente, o acesso a plenos direitos trabalhistas e previdenciários. A PEC é uma proposta para impedir que a classe dos que vivem do trabalho usufruam qualquer direito”, afirma Salete.
Negras e Domésticas
Nesse mesmo campo de corte e ausência de acesso a plenos direitos, também se encontram as mulheres negras e as domésticas. Dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Previdência e pelo Ipea, de março de 2016, evidenciam que as mulheres ocupam 92% do emprego doméstico no Brasil. Dessas, mais da metade são negras e 70% não tem carteira assinada. Em 2015, a PEC que regulamentava o trabalho doméstico foi considerada um avanço. Porém, se a contrarreforma for aprovada, as domésticas, que ainda nem tinham a regulamentação totalmente efetivada, terão um retrocesso sem nem ao menos terem aproveitado os benefícios.
Professora do Curso de Química da Ufba e militante nos movimentos negro e feminista, Bárbara Carine, defende que a PEC também tem componentes racistas. A docente traça um paralelo entre as atividades das mulheres no período da escravidão e o atual trabalho. Para Bárbara, grande parte das mulheres, no período escravocrata, atuavam nas lavouras, com seus filhos carregados no colo, passando por processos de repressão e trabalho pesado. Assim, sem diferenciação entre o trabalho do homem e o da mulher. “Atualmente, a mulher negra continua sendo forte no imaginário coletivo. Ela “suporta” carregar saco de cimento, bloco e etc. Então é essa mulher negra que tem o mesmo trabalho similar ao do homem, e que atua também em vários outros campos ao mesmo tempo. Nesse sentido, julgo essa reforma como racista, porque ela reforça essa concepção e vai atingir fortemente essa população”, diz a militante.
Serviço público
No caso dos regimes próprios dos servidores públicos, será extinta a chamada “integralidade”, ou seja, o recebimento da aposentadoria com base no salário integral do servidor, assim como também está previsto o fim da paridade (correção dos benefícios com base na regra do servidor na ativa) para homens, com menos de 50 anos, e para mulheres com menos de 45 anos, e que ingressaram antes de 2003 no serviço público. Também será proibido o acúmulo da aposentadoria com pensão por morte, por qualquer beneficiário.
Pela proposta da PEC, os docentes da educação básica terão que trabalhar dez anos a mais. As mais penalizadas, novamente, serão as professoras, pois o gênero feminino representa cerca de 80% da categoria. Já os ataques sobre os docentes do ensino público superior estarão relacionados principalmente à criação, por parte dos governos federal e estaduais, de planos privados de aposentadoria.
Pensão por morte
O valor pago à viúva ou ao viúvo passará a ser de 50% do valor do benefício recebido pelo contribuinte que morreu, com um adicional de 10% para cada dependente do casal. A questão também prejudica principalmente às mulheres, visto que as mesmas possuem maior sobrevida. As pensões também não serão mais vinculadas ao salário mínimo. O INSS pagará 100% do benefício apenas aos pensionistas que tiverem cinco filhos. Além disso, o valor extra pago por conta do número de dependentes não será agregado à pensão no momento em que os filhos completarem 18 anos.
Acúmulo de pensão e aposentadoria
A PEC do governo Temer também proibirá a possibilidade de acúmulo de aposentadoria e pensão, fato que novamente impacta sobretudo as idosas pelo aspecto da sobrevida maior. Na prática, a contrarreforma da Previdência jogará nas costas da cônjuge sobrevivente a responsabilidade por manter uma família, mesmo após sua velhice, período em que estará cansada, debilitada fisicamente e propicia a doenças. Além do desamparo social, proibirá que um cônjuge tenha o direito de deixar para seus filhos os frutos do esforço de uma vida inteira de trabalho.
Previdência complementar – O direito que vira mercadoria
A proposta do governo de Michel Temer é apoiada incondicionalmente pelos banqueiros e grandes empresários. Existe uma razão para isso: todos visam exclusivamente o lucro. Entre os principais objetivos da PEC da contrarreforma da Previdência está a intenção de fazer o desmonte dos fundos de previdência pública, empurrando os trabalhadores para os planos de previdência privada. O que se pretende é fazer com que antigos direitos trabalhistas e sociais da classe trabalhadora (aposentadoria, educação, saúde etc) se tornem mercadorias que, para ter acesso, terão que ser pagos.
Na Bahia, por exemplo, os governos petistas de Jaques Wagner e Rui Costa não perderam tempo. Antes mesmo da atual ofensiva do governo federal contra a Previdência Privada, em território baiano já havia sido instituído o PrevBahia, um plano privado de aposentadoria complementar para os servidores públicos. Segundo um dos assessores jurídicos da Associação dos Docentes da Uneb (Aduneb – Seção Sindical do ANDES-SN), Vítor Santos, a Lei 13.222, de 12 de janeiro de 2015, estabelece que, a partir desta data, todos aqueles que ingressam no serviço público terão que obedecer ao teto previdenciário do Regime Geral do INSS, que hoje corresponde a R$ 5.531,31. Os trabalhadores que ingressaram no serviço público antes da citada data, tem assegurado seus antigos direitos adquiridos. Desde a imposição do PrevBahia, a Aduneb-SSind faz a denúncia e alerta a categoria sobre as armadilhas do plano de previdência privada.
Mentira
Entre os argumentos para defender a contrarreforma, o governo utiliza um falso discurso de déficit da Previdência. Ao contrário do que é divulgado pelo governo e pela grande mídia, a Previdência Social não é deficitária. Em números, a seguridade social tem arrecadação anual de cerca de R$ 694 bilhões e despesas de R$ 683 bilhões, ou seja, um saldo positivo de R$ 11 bilhões. De acordo com o membro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, Bruno Tito, a conta feita para mostrar o déficit é distorcida, pois a receita da Seguridade Social não corresponde apenas à contribuição previdenciária (R$ 352,6 bilhões), mas a soma de todas as fontes de receitas que, entre outras, inclui Cofins e Pis/Pasep, chegando ao valor final de R$ 694 bilhões. “O que ocorre, na verdade, é um desvio desses recursos para destiná-los ao pagamento dos juros da dívida pública. Uma dívida que nunca foi auditada e que consome quase metade do orçamento da União”, explica Tito.
Proteção a empresas
Se não bastasse a invenção sobre o rombo na Previdência, o governo Temer ainda protege empresas devedoras do INSS. De acordo com números levantados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o projeto da contrarreforma da Previdência finge desconhecer a divida de empresas ao INSS, que chegam à somatória de R$ 426 bilhões. O valor da dívida é aproximadamente o triplo do déficit da Previdência do ano passado. Entre as principais devedoras estão empresas como JBS, Vale, Caixa Econômica Federal e Bradesco.
Histórico de ataques à Previdência
Durante a reportagem várias entrevistadas, embora indignados com a intensificação das investidas do governo Temer contra a classe trabalhadora, fizeram questão de ressaltar que existe no país um histórico de ataques à Previdência Social.
Em 1998, período do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Emenda Constitucional nº 20 deu origem ao Fator Previdenciário. Foi uma estratégia neoliberal para adiar a aposentadoria dos segurados, que corroeu o valor real dos benefícios. Em 2003, após subir a rampa do Planalto nos braços do povo, o presidente Lula, mantém o que fez FHC e ainda cria a Emenda Constitucional nº 41, que atacou a aposentadoria dos servidores públicos. Em 2010, após muita mobilização e pressão popular, o Congresso Nacional aprovou o fim do Fator Previdenciário.
Porém, o mesmo presidente Lula, com base na mesma desculpa atual de rombo da Previdência, vetou a norma. Em 2015, Dilma Rousseff, com o discurso de cortes de gastos, propõe as Medidas Provisórias 664 e 665, que prejudica principalmente a pensão das viúvas, que deixa de ser vitalícia para mulheres de determinada idade. No início do ano passado, ainda no governo Dilma, foi divulgada a necessidade de fazer a reforma da Previdência. Na ocasião, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apresentou medidas bem próximas às defendidas atualmente pelo governo Temer.
União e resistência
Para a docente do Curso de História e diretora da Aduneb-SSind, Ediane Lopes, a proposta de contrarreforma da Previdência faz parte de um amplo conjunto de medidas, de uma política neoliberal, que busca a retirada de direitos do trabalhador. Entre todas, a PEC 287/16 pode ser considerada como uma das mudanças mais graves, pois atinge todos os trabalhadores, e que, na prática, vai representar um verdadeiro desmonte da Previdência Social. Para ser efetiva e respeitar os direitos da classe trabalhadora, ela teria que ser baseada em mecanismos que buscariam a ampliação de direitos sociais e trabalhistas e não o corte dos mesmos.
“A Previdência, desde o seu início, no século XIX, foi em instrumento de luta, de organização e que possibilitou a potencialização da classe trabalhadora. Para nós, da Aduneb-SSind, é extremamente importante que nos mobilizemos, estejamos na rua a cada chamada, que participemos de nossas assembleias e atividades do sindicato, dos movimentos sociais e outras organizações políticas. É preciso organizar a classe trabalhadora. É necessária a consciência de todas e todos sobre a retirada de direitos. É nas ruas, demonstrando força e resistência, que conseguiremos barrar a PEC 278/16”, encerrou a diretora.
Comprometida com a profissão, Júlia se dedica integralmente à pesquisa, ensino e à formação de uma nova geração de brasileiros. Segundo a proposta de contrarreforma da Previdência, a docente só conseguirá se aposentar com valor integral se trabalhar até os 78 anos de idade, ou seja, apenas um ano a menos que a estimativa média de vida da mulher brasileira. Júlia considera que envelhecer no Brasil é um grande desafio, especialmente hoje, com o desmanche do Sistema Único de Saúde e da Previdência.
Quando o assunto é a aposentadoria, se depender do governo Temer (PMDB), restará à população trabalhar até o leito de morte. Se puder, com os poucos recursos financeiros que sobrarem, a uma pequena parcela da população ainda existirá a chance de pagar por um plano de previdência privada para ter um mínimo de dignidade nos últimos anos de vida. Essas são as opções que o governo federal, por meio da contrarreforma da Previdência Social, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287/16, tenta impor aos trabalhadores. Mas, o que é apontado como ruim, ficará ainda pior se comparado os possíveis prejuízos entre os sexos masculino e feminino. O corte na carne, que atingirá toda a classe trabalhadora, será ainda mais profundo nas mulheres.
Com a contrarreforma passa a existir uma única modalidade de aposentadoria voluntária, que exigirá os requisitos de, no mínimo, 65 anos de idade e 25 anos de contribuição para homens e mulheres. Os trabalhadores que almejarem a aposentadoria integral deverão contribuir por 49 anos. Atualmente, para a aposentadoria plena são exigidos 35 anos de contribuição para homens e 30 para mulheres, com contribuição mínima de 15 anos.
Ataque às mulheres
Uma das propostas da PEC que mais recebe crítica do movimento feminista é a tentativa do governo em igualar o tempo da aposentadoria entre mulheres e homens em 25 anos. A justificativa governista é o fato de o sexo feminino viver mais tempo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em dezembro de 2016, mostram que a média de vida da mulher brasileira é de 79,1 anos, enquanto o homem é de 71,9 anos.
Porém, o projeto de Temer não leva em consideração a opressão e o machismo, que diariamente impactam a mulher no mundo do trabalho. Pesquisas comprovam que elas possuem menores chances de chegar a cargos de chefia, o projeto de ascensão profissional concorre com a dupla ou tripla jornada, e que muitas são obrigadas a exercer para cuidar de filhos e gerenciar a casa. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2013, mulheres gastam cerca de 20 horas semanais em atividades não remuneradas voltadas ao lar. Enquanto isso, homens nas mesmas funções se ocupam por apenas 5 horas. Dados da empresa de recursos humanos Catho, de março do ano passado, indicam que no mercado de trabalho os homens ganham, em média, até 30% a mais que o sexo oposto.
Pesquisadora sobre gênero e direitos humanos, a professora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia (Neim/Ufba), Salete da Silva, analisa o impacto da contrarreforma da Previdência na mulher. Para a docente, se as regras forem aprovadas, será o fim do pleno acesso à Previdência Pública, e haverá um aprofundamento nas desigualdades de classe e gênero. “Temer não enxerga o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres. Ignora que elas são mais mal remuneradas e, portanto, contribuem menos e são formalizadas mais tarde. Além disso, mulheres, em geral, tem uma trajetória de trabalho descontínua devido à maternidade, processos de adoecimento decorrente das sobrecargas, em virtude de muitas vezes não poderem assumir compromissos quando são cuidadoras de crianças, idosos e enfermos na família”, explica Salete.
Professora do Curso de Química do Campus I da Uneb, Carmen Sá, é um dos exemplos de quem foi obrigada a entrar tardiamente no mercado de trabalho, devido à necessidade de cuidar dos filhos. Começou a contribuir com o INSS aos 36 anos, em agosto de 1989. “Só me profissionalizei quando os filhos começaram a ir para a escola e eu dispunha de mais tempo para me dedicar ao trabalho”, explica. Aos 64 anos, pela atual regra, a docente já teria idade para a aposentadoria e receberia 95.5% do seu salário da ativa, ou seja, remuneração quase integral. Porém, se a contrarreforma for aprovada, a professora, além de ter que trabalhar mais 1,3 anos, só receberá 76,5% do salário atual. “Penso que as mulheres trabalhadoras sofrerão brutalmente com essas mudanças anunciadas, uma vez que em nosso país machista, excludente, trabalhamos muito mais que os homens”, comenta Carmen.
Segundo especialistas, entre os segmentos que as mulheres mais serão prejudicadas estão as trabalhadoras rurais, as domésticas e as docentes da educação básica.
No campo
Trabalhadores rurais, que até agora não eram obrigados a contribuir para o INSS, terão de fazer contribuições para se aposentar. Valerá a idade mínima dos 65 anos. A professora Salete da Silva explica o prejuízo maior ao sexo feminino: “Na zona rural, muitas mulheres são consideradas apenas auxiliares de seus maridos nas atividades de economia familiar”. Na medida em que serão obrigadas a pagar pra se aposentar, isso terá forte impacto no orçamento, sendo que provavelmente a maioria nunca terá condições de alcançar a aposentadoria. “Ao propor que trabalhadores rurais contribuam, o governo golpeia de morte aqueles e, sobretudo, aquelas a quem não foram dados, historicamente, o acesso a plenos direitos trabalhistas e previdenciários. A PEC é uma proposta para impedir que a classe dos que vivem do trabalho usufruam qualquer direito”, afirma Salete.
Negras e Domésticas
Nesse mesmo campo de corte e ausência de acesso a plenos direitos, também se encontram as mulheres negras e as domésticas. Dados divulgados pelo Ministério do Trabalho e Previdência e pelo Ipea, de março de 2016, evidenciam que as mulheres ocupam 92% do emprego doméstico no Brasil. Dessas, mais da metade são negras e 70% não tem carteira assinada. Em 2015, a PEC que regulamentava o trabalho doméstico foi considerada um avanço. Porém, se a contrarreforma for aprovada, as domésticas, que ainda nem tinham a regulamentação totalmente efetivada, terão um retrocesso sem nem ao menos terem aproveitado os benefícios.
Professora do Curso de Química da Ufba e militante nos movimentos negro e feminista, Bárbara Carine, defende que a PEC também tem componentes racistas. A docente traça um paralelo entre as atividades das mulheres no período da escravidão e o atual trabalho. Para Bárbara, grande parte das mulheres, no período escravocrata, atuavam nas lavouras, com seus filhos carregados no colo, passando por processos de repressão e trabalho pesado. Assim, sem diferenciação entre o trabalho do homem e o da mulher. “Atualmente, a mulher negra continua sendo forte no imaginário coletivo. Ela “suporta” carregar saco de cimento, bloco e etc. Então é essa mulher negra que tem o mesmo trabalho similar ao do homem, e que atua também em vários outros campos ao mesmo tempo. Nesse sentido, julgo essa reforma como racista, porque ela reforça essa concepção e vai atingir fortemente essa população”, diz a militante.
Serviço público
No caso dos regimes próprios dos servidores públicos, será extinta a chamada “integralidade”, ou seja, o recebimento da aposentadoria com base no salário integral do servidor, assim como também está previsto o fim da paridade (correção dos benefícios com base na regra do servidor na ativa) para homens, com menos de 50 anos, e para mulheres com menos de 45 anos, e que ingressaram antes de 2003 no serviço público. Também será proibido o acúmulo da aposentadoria com pensão por morte, por qualquer beneficiário.
Pela proposta da PEC, os docentes da educação básica terão que trabalhar dez anos a mais. As mais penalizadas, novamente, serão as professoras, pois o gênero feminino representa cerca de 80% da categoria. Já os ataques sobre os docentes do ensino público superior estarão relacionados principalmente à criação, por parte dos governos federal e estaduais, de planos privados de aposentadoria.
Pensão por morte
O valor pago à viúva ou ao viúvo passará a ser de 50% do valor do benefício recebido pelo contribuinte que morreu, com um adicional de 10% para cada dependente do casal. A questão também prejudica principalmente às mulheres, visto que as mesmas possuem maior sobrevida. As pensões também não serão mais vinculadas ao salário mínimo. O INSS pagará 100% do benefício apenas aos pensionistas que tiverem cinco filhos. Além disso, o valor extra pago por conta do número de dependentes não será agregado à pensão no momento em que os filhos completarem 18 anos.
Acúmulo de pensão e aposentadoria
A PEC do governo Temer também proibirá a possibilidade de acúmulo de aposentadoria e pensão, fato que novamente impacta sobretudo as idosas pelo aspecto da sobrevida maior. Na prática, a contrarreforma da Previdência jogará nas costas da cônjuge sobrevivente a responsabilidade por manter uma família, mesmo após sua velhice, período em que estará cansada, debilitada fisicamente e propicia a doenças. Além do desamparo social, proibirá que um cônjuge tenha o direito de deixar para seus filhos os frutos do esforço de uma vida inteira de trabalho.
Previdência complementar – O direito que vira mercadoria
A proposta do governo de Michel Temer é apoiada incondicionalmente pelos banqueiros e grandes empresários. Existe uma razão para isso: todos visam exclusivamente o lucro. Entre os principais objetivos da PEC da contrarreforma da Previdência está a intenção de fazer o desmonte dos fundos de previdência pública, empurrando os trabalhadores para os planos de previdência privada. O que se pretende é fazer com que antigos direitos trabalhistas e sociais da classe trabalhadora (aposentadoria, educação, saúde etc) se tornem mercadorias que, para ter acesso, terão que ser pagos.
Na Bahia, por exemplo, os governos petistas de Jaques Wagner e Rui Costa não perderam tempo. Antes mesmo da atual ofensiva do governo federal contra a Previdência Privada, em território baiano já havia sido instituído o PrevBahia, um plano privado de aposentadoria complementar para os servidores públicos. Segundo um dos assessores jurídicos da Associação dos Docentes da Uneb (Aduneb – Seção Sindical do ANDES-SN), Vítor Santos, a Lei 13.222, de 12 de janeiro de 2015, estabelece que, a partir desta data, todos aqueles que ingressam no serviço público terão que obedecer ao teto previdenciário do Regime Geral do INSS, que hoje corresponde a R$ 5.531,31. Os trabalhadores que ingressaram no serviço público antes da citada data, tem assegurado seus antigos direitos adquiridos. Desde a imposição do PrevBahia, a Aduneb-SSind faz a denúncia e alerta a categoria sobre as armadilhas do plano de previdência privada.
Mentira
Entre os argumentos para defender a contrarreforma, o governo utiliza um falso discurso de déficit da Previdência. Ao contrário do que é divulgado pelo governo e pela grande mídia, a Previdência Social não é deficitária. Em números, a seguridade social tem arrecadação anual de cerca de R$ 694 bilhões e despesas de R$ 683 bilhões, ou seja, um saldo positivo de R$ 11 bilhões. De acordo com o membro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, Bruno Tito, a conta feita para mostrar o déficit é distorcida, pois a receita da Seguridade Social não corresponde apenas à contribuição previdenciária (R$ 352,6 bilhões), mas a soma de todas as fontes de receitas que, entre outras, inclui Cofins e Pis/Pasep, chegando ao valor final de R$ 694 bilhões. “O que ocorre, na verdade, é um desvio desses recursos para destiná-los ao pagamento dos juros da dívida pública. Uma dívida que nunca foi auditada e que consome quase metade do orçamento da União”, explica Tito.
Proteção a empresas
Se não bastasse a invenção sobre o rombo na Previdência, o governo Temer ainda protege empresas devedoras do INSS. De acordo com números levantados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o projeto da contrarreforma da Previdência finge desconhecer a divida de empresas ao INSS, que chegam à somatória de R$ 426 bilhões. O valor da dívida é aproximadamente o triplo do déficit da Previdência do ano passado. Entre as principais devedoras estão empresas como JBS, Vale, Caixa Econômica Federal e Bradesco.
Histórico de ataques à Previdência
Durante a reportagem várias entrevistadas, embora indignados com a intensificação das investidas do governo Temer contra a classe trabalhadora, fizeram questão de ressaltar que existe no país um histórico de ataques à Previdência Social.
Em 1998, período do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Emenda Constitucional nº 20 deu origem ao Fator Previdenciário. Foi uma estratégia neoliberal para adiar a aposentadoria dos segurados, que corroeu o valor real dos benefícios. Em 2003, após subir a rampa do Planalto nos braços do povo, o presidente Lula, mantém o que fez FHC e ainda cria a Emenda Constitucional nº 41, que atacou a aposentadoria dos servidores públicos. Em 2010, após muita mobilização e pressão popular, o Congresso Nacional aprovou o fim do Fator Previdenciário.
Porém, o mesmo presidente Lula, com base na mesma desculpa atual de rombo da Previdência, vetou a norma. Em 2015, Dilma Rousseff, com o discurso de cortes de gastos, propõe as Medidas Provisórias 664 e 665, que prejudica principalmente a pensão das viúvas, que deixa de ser vitalícia para mulheres de determinada idade. No início do ano passado, ainda no governo Dilma, foi divulgada a necessidade de fazer a reforma da Previdência. Na ocasião, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apresentou medidas bem próximas às defendidas atualmente pelo governo Temer.
União e resistência
Para a docente do Curso de História e diretora da Aduneb-SSind, Ediane Lopes, a proposta de contrarreforma da Previdência faz parte de um amplo conjunto de medidas, de uma política neoliberal, que busca a retirada de direitos do trabalhador. Entre todas, a PEC 287/16 pode ser considerada como uma das mudanças mais graves, pois atinge todos os trabalhadores, e que, na prática, vai representar um verdadeiro desmonte da Previdência Social. Para ser efetiva e respeitar os direitos da classe trabalhadora, ela teria que ser baseada em mecanismos que buscariam a ampliação de direitos sociais e trabalhistas e não o corte dos mesmos.
“A Previdência, desde o seu início, no século XIX, foi em instrumento de luta, de organização e que possibilitou a potencialização da classe trabalhadora. Para nós, da Aduneb-SSind, é extremamente importante que nos mobilizemos, estejamos na rua a cada chamada, que participemos de nossas assembleias e atividades do sindicato, dos movimentos sociais e outras organizações políticas. É preciso organizar a classe trabalhadora. É necessária a consciência de todas e todos sobre a retirada de direitos. É nas ruas, demonstrando força e resistência, que conseguiremos barrar a PEC 278/16”, encerrou a diretora.
Edição de ANDES-SN. Ilustração de Rafael Balbueno
Fonte: Aduneb-SSind – 10/03/2017
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