Desde a chegada da Covid-19 ao Brasil, muito se discute sobre os riscos de disseminação e dificuldade de prevenção quando a doença chegar às favelas e periferias brasileiras. Embora tenha entrado no país pela classe média alta, que regressou de viagens ao exterior, a população das camadas mais pobres é que tendem a sofre maior impacto da pandemia do novo coronavírus.
Isso, porque, historicamente o país se estrutura, urbano-espacialmente, privilegiando em termos de infraestrutura e condições de moradia os bairros ondem habitam os mais ricos, relegando ao esquecimento e total ausência de políticas públicas as áreas mais pobres, onde há uma grande concentração de habitantes e enorme precariedade como falta de fornecimento de água, assistência básica de saúde, por exemplo.
Para falar das consequências que essa organização de cidade pode ter para a população nesse momento de pandemia e quais medidas precisam ser adotadas tanto pelo poder público quanto pelos movimentos de esquerda, entrevistamos Cláudio Rezende Ribeiro, docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no departamento Urbanismo e Meio Ambiente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da Pós-graduação em Urbanismo da mesma faculdade. Cláudio também é membro pesquisador do Laboratório Direito e Urbanismo do PROURB/FAU/UFRJ e integrante do grupo PERIFAU – Urbanismo e Periferia.
ANDES-SN: Cláudio, como a desigualdade socioespacial no Brasil se expressa nessa pandemia?
Cláudio Rezende Ribeiro: De várias formas. O que eu vou destacar é uma distribuição desigual espacial da contaminação, que me parece problemática em médio prazo. É um pouco explícito que a contaminação começa, principalmente, pela classe média que viajava para o exterior, , apesar de a primeira morte no país ter sido uma empregada doméstica contaminada por sua patroa. Mas existe uma questão de médio prazo mais abrangente que é muito problemática. Ou seja, a visibilidade da contaminação agora está muito forte. Quando a gente pega espacialmente as divisões de contaminação, elas estão nos bairros da cidade melhor estruturados. No caso do Rio de Janeiro, tem um painel que a prefeitura criou que mostra de forma muito explícita: a Zona Sul e a Barra da Tijuca são os lugares onde predominam a contaminação em disparado.
Um dos riscos que temos que pensar em relação à distribuição desigual do espaço da contaminação, é que a visibilidade do contágio e das mortes nas áreas pobres, que vai acontecer a partir de agora no espraiamento do contágio pode ter uma visibilidade diminuída. Pode ser que a curva e o tratamento nas áreas nobres e ricas sejam devidamente controlados e o descontrole maior aconteça, pelo óbvio, nas áreas mais periféricas, e isso seja invisibilizado exatamente porque, primeiro, o pico está nessas áreas mais valorizadas e a circulação de informação se dá também, desigualmente, a partir da distribuição espacial e econômica.
Isso me parece um problema muito grave: a diferença na distribuição do contágio pode fazer com que ações mais fortes nessas áreas mais pobres sejam subestimadas ou não sejam realizadas, com uma autorização de uma invisibilidade social. Isso é algo que a gente tem que prestar atenção. É importante chamar atenção para a forma como a transmissão está ocorrendo nessas áreas mais pobres. Acompanhar, ver os números e não deixar isso sair de pauta, quando essas curvas talvez tiverem um desencontro, de estabilização nas áreas mais ricas e aumento dos casos nas áreas mais pobres.
ANDES-SN: Como a questão da moradia precária interfere na prevenção à doença, deixando a população mais pobre ainda mais vulnerável?
CRR: É importante entender que moradia contempla várias coisas, inclusive localização, acesso a serviços, etc. Primeiro, internamente à residência, existem vários problemas, devido ao tamanho das residências muitas vezes pequeno e muito denso, logo, é difícil fazer o isolamento. Também, em muitos lugares, a falta de condições de conforto ambiental faz com que as casas não tenham circulação de ar suficiente e isso potencializa doenças alérgicas, por exemplo, e doenças respiratórias, o que pode agravar tanto o contágio como também a probabilidade de uma doença mais grave.
Mas, na escala dos bairros, é importante entender, também, que o acesso a serviços de saúde é mais difícil. As pessoas estão mais isoladas. Além disso, existe um problema de distribuição de água, que é muito grave. Áreas que já não tinham água e vão continuar não tendo, nesse momento, se não houver uma ação imediata.
E, ainda, o transporte. As pessoas estão em lugares que elas têm que se deslocar por transporte coletivo, que não tem um controle do contágio, por mais que as prefeituras estejam tomando as medidas formais, jurídicas. Efetivamente, o transporte coletivo na maioria das cidades do Brasil é privado e feito da pior forma possível, e como essas pessoas também estão vivenciando sob pressão, dos seus patrões, para trabalhar, elas têm que se transportar.
É a soma de duas coisas: o acesso a um transporte muito ruim que não favorece o distanciamento social, levando e trazendo pessoas de várias áreas que acabam se encontrando nesses transportes, potencialmente disseminando a pandemia para áreas onde há esse viés propriamente problemático das residências.
É uma série de questões em cascata, que problematizam bastante espacialmente o lugar de contágio e de controle dessas comunidades, desses bairros e dessas favelas.
Outra coisa importante é que as comunidades já lidam com um acúmulo de doenças que em outros lugares não existem. Por exemplo, existem comunidades mais pobres onde a Hanseníase é um problema. Um tipo de doença que é controlada em vários lugares, mas em algumas favelas não, isso é um caso específico, mas têm vários outros. Ou seja, as pessoas já estão lidando com condições sanitárias muito frágeis e a chegada dessa pandemia só piora essa situação. Então, é um potencializador: já se encontram numa área muito fragilizada sanitariamente e urbanisticamente pensando e a pandemia vai atingir de uma maneira mais problemática, mais forte, certamente.
ANDES-SN: Qual a possibilidade de isolamento doméstico e cuidados de prevenção nesses lugares?
CRR: Como já sinalizei antes, é muito mais difícil fazer o isolamento pela distribuição espacial das residências e, sobretudo, pela densidade das ocupações, mas também é importante pensar que existe uma ausência muito grande de espaços públicos. Ou seja, qualquer tarefa que você precise fazer, se a pessoa precisa manter sua saúde mental, e mesmo saúde do corpo, de vez em quando fazer uma caminhada rápida – o que não está proibido nesse momento de isolamento – se você tem um espaço público generoso perto da sua casa, com isolamento social, em alguns horários você consegue manter o distanciamento e fazer uma caminhada, por exemplo. E algumas pessoas vão precisar fazer isso para manter a saúde. Numa área em que você não tem espaço público garantido, isso é praticamente inviável, a própria circulação para ir ao mercado, por exemplo, você passa por lugares que são mais estreitos, a ausência de espaço público, que não é exclusivo de favelas, vamos deixar claro, mas que ali se potencializa, é um problema coletivo muito forte e que potencializará a pandemia nesses espaços.
ANDES-SN: Como você vê a organização dos movimentos sociais e das comunidades nas favelas e periferias para garantir informação sobre a doença e sua prevenção, além de subsistência dos moradores?
CRR: As comunidades estão se organizando e é importante perceber que não é um fator diferencial na pandemia. Como o Estado só chega nesses espaços com aparato policial para fazer violência, em relação a todos os outros serviços a comunidade sempre tem que se organizar. Sem romantizar o espaço da pobreza, já existe uma rede de proteção social. É muito importante perceber que, apesar de todas as precariedades que estão sofrendo, estão dando essa resposta. É importante acompanhar e reforçar isso, tanto dando visibilidade, ajudando e se organizando para fazer redes de solidariedade. Isso é algo que aos poucos vai se construindo, mas pensando também como isso pode gerar políticas sociais futuras para manter essa condição de manutenção dos direitos mais presentes, porque com o fim da pandemia vai ser necessário manter essas redes funcionando. Só para dar um exemplo, para a coleta de água, quem mora em bairros periféricos já não conta com serviço de água pleno, geralmente existe uma rede de utilização de várias formas de captação de água. Ou seja, as pessoas têm a própria caixa d’água, que vai receber a água “formal”, mas eles captam água da chuva, ás vezes de nascente. Ou seja, tem que fazer uma combinação de captação de água para dar conta. Já não contam com o serviço do Estado, então se encontram politicamente mais preparados para dar conta dessa rede, mas é um duplo sentido. Estão politicamente mais preparados, mas estão mais precarizados. É importante observar como isso vai se disseminar e, sem romantizar, entender que essas redes serão necessárias para uma resistência posterior.
ANDES-SN: Quais medidas imediatas e de médio prazo você acredita que os governos devam adotar em relação às comunidades mais pobres?
CRR: Acho que uma das ações imediatas, como já disse, é levar água e sabão. Isso é muito importante porque as pessoas não têm dinheiro para comprar sabão ou sabonete, e não têm abastecimento de água. Aqui no Rio de Janeiro estamos com um caso gravíssimo da contaminação da água da Cedae, que não foi resolvido, para vermos como é uma dificuldade muito grande que vamos enfrentar.
Obviamente, criar redes de cuidado de saúde voltadas para esses lugares. É necessário que haja uma rede tanto de informação quanto de cuidado e observação extrema. Não só paras favelas, mas para todos os bairros. Sobretudo para esses lugares onde as pessoas estão sendo obrigadas a ir trabalhar e estão em condições piores de permanência. Isso é muito importante.
Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, a gente vive um momento em que as redes básicas de saúde estão sucateadas faz muito tempo e pioraram muito com a adoção das organizações sociais. Desde 2015, foi autorizado pelo STF, com voto do [Ministro Luiz] Fux, o gasto indireto em relação à saúde, educação e cultura. e então, estamos vivenciando aqui o caos das OS. As notícias do Rio de Janeiro antes da pandemia eram a crise da água no estado, com a contaminação por Geosmina, e a crise da saúde no município, dos trabalhadores que não estavam recebendo salário. São exatamente as duas questões que precisamos: água e saúde numa crise aguda em que as comunidades são as pontas que mais sofrem com isso.
A saída é reverter esse processo, fazendo equipes de saúde robustas com concurso público, pagando os salários, dando condições de trabalho adequadas para elas e distribuindo espacialmente esses grupos para informar, não apenas tratar na ponta, mas ajudar a preparar esses lugares. Trabalhadores de saúde para poder levar informação e cuidado para essas áreas é fundamental.
A desigualdade de informação faz com que as áreas mais ricas, tenham mais conhecimento. e então, eu diria que água, produto de limpeza e equipes de saúde são ações fundamentais e imediatas. E, ao mesmo tempo, garantir a alimentação. A produção e distribuição de alimentos devem ser feitas, seja através de programas de renda mínima, seja a partir da distribuição direta de alimentação, para garantir que as pessoas possam ficar em casa.
ANDES-SN: A questão da moradia e organização da vida urbana se coloca com um grande aspecto que pode determinar a dificuldade de proteção da saúde das comunidades pobres. Como os movimentos sociais (a esquerda) vêm abordando essa pauta ao longo dos anos e, em especial, nesse momento?
CRR: É importante entender que a forma como se pensa a cidade, por um viés crítico, é entender o direito à cidade. A cidade não pode ser encarada como mercadoria, a terra não pode ser encarada como um ativo de valorização. É exatamente porque a terra é vista assim que gera essa desigualdade. Onde áreas mais valorizadas recebem mais investimentos e vão ficar ainda mais valorizadas. Ou seja, entender a cidade como um valor de uso, é algo que a esquerda tem buscado [disseminar] e tem construído um campo crítico no Brasil muito forte, de urbanismo crítico que encara o direito à cidade a partir do viés do direito à habitação e do direito ao trabalho. Infelizmente, a temos sido minoritários. As prefeituras em geral tem adotado, nas últimas décadas, uma visão ultra-mercantil da cidade, global e não se preocuparam em construir infraestrutura, habitação de qualidade e distribuir infraestrutura de forma mais igualitária na cidade. É muito importante que a esquerda continue nessa movimentação de denunciar como é essa forma ultraliberal de organização, que faz com que a cidade não esteja pronta pra enfrentar, não só essa pandemia, mas o cotidiano. Pois, antes da pandemia, já era uma barbárie. A pandemia realça vários problemas que nós teremos que enfrentar agora de forma coletiva e que vai ser muito duro.
ANDES-SN: Você acredita que após a pandemia, há alguma possibilidade de um olhar mais atento e maior investimento do poder público para as comunidades de favela e das periferias?
CRR: Só terá um investimento melhor do poder público nessas áreas, se houver movimentação. Até agora não tenho visto nenhuma movimentação política mais sólida no sentido de reverter o que era feito antes. O que tem sido feito, a meu ver, são respostas à crise, porque [os governantes] têm que dar uma resposta pública efetiva a essa crise, com exceção obviamente do chefe do executivo, o capitão ex-atleta, que de fato entra num delírio além da imaginação, mas os outros governantes têm feito ações, que são ações com um discurso do imediatismo. Existe uma utilização do discurso da crise para aprofundar posteriormente o desinvestimento em serviços públicos. Não podemos achar que o momento imediato de valorização do SUS, das universidades públicas, da estrutura pública, de garantia da renda mínima será permanente, que isso tudo não vai ser desmantelado depois, com o discurso de que, como voltamos ao normal, agora podemos sair daquele estado de exceção, que tinha que garantir as coisas de forma pública, e vamos, daqui para frente, retomar o crescimento da economia, do empreendedorismo, e tudo mais. Aquela cantilena que conhecemos, ou seja, que principalmente agora teremos que fazer sacrifícios para que a sociedade volte ao normal e precisaremos cortar o investimento público como, por exemplo, o salário dos servidores. O [Rodrigo] Maia continua dizendo que tem que cortar o salário dos servidores, que temos que cooperar, para a crise.
Não existe nada apontando para uma melhoria contínua desse tipo de investimento público. Para que isso aconteça, os movimentos de esquerda têm que se colocar desde já, fortalecendo a sua política e mostrando como que o despreparo para a pandemia também é um despreparo para a vida cotidiana. Isso é fundamental, porque se reforçar esse discurso de que é um momento de exceção, quando acabar a pandemia, vão vir com o discurso de acabar com a política de investimento em serviços públicos. Foi o estado de Calamidade Pública que permitiu sair da Lei de Responsabilidade Fiscal. E, quando acabar esse estado volta a LRF.
Ou seja, nada garante que essa crise pandêmica vai reforçar o caráter público, eu diria inclusive que o espaço público está em profunda ameaça. As pessoas podem começar a ter fobia de espaço público, dependendo do tempo que tivermos que ficar em quarentena. As pessoas acham que o povo vai querer voltar às praças, ocupar tudo, mas pode gerar um movimento contrário, de uma repulsa. Esse vírus é muito neoliberal nesse aspecto, ninguém pode se encontrar com ninguém, se tocar, é um comportamento individual, a luta contra ele obviamente é uma luta socialista. Agora, para que essa luta se torne uma força, tem que ter uma intervenção forte dos movimentos de esquerda, porque, senão, eu diria que a tendência normal do que está sendo conduzido vai ser um contragolpe muito forte a essa linha pública de investimento.
*As opiniões contidas nesta entrevista são de inteira responsabilidade dos entrevistados e não necessariamente correspondem ao posicionamento político deste Sindicato
Fonte: ANDES-SN – Atualizado em 09 de Abril de 2020 às 18h22
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